“Qual o sentido da vida?”, “Por que faço o que faço?”, essas e muitas outras perguntas podem, em algum momento da existência, ocupar nossos pensamentos acerca daquilo que “oferece sentido” ao que fazemos e vivemos. Contudo, convido o leitor a se desapegar dessas perguntas ordinárias e habituais em função de uma outra maneira de colocar o problema do sentido: ao invés de buscar “qual” o sentido, perguntemo-nos “como” ele se configura, isto é, de que maneira o produzimos. Esta simples mudança na colocação do problema já expressa uma posição ética e, ao mesmo tempo, estética de meu convite: trata-se de afirmar o sentido enquanto potência de direção, uma configuração subjetiva e material que se cria e se modifica constantemente a partir das relações que compomos com o meio ao qual somos indissociáveis. Um potência que se vê imbricada num plano coletivo de forças e que é transformada por inúmeros vetores heterogêneos, isto é, por políticas do sentido. Vejamos o que isso significa.
Observamos momentos na história ocidental em que o problema do “sentido” recebeu diferentes maneiras de ser colocado e vivido (por exemplo o valor religioso metafísico na Idade Média). Contudo, quando concentramos nossa atenção na contemporaneidade, é evidente uma nova nuance em relação ao tempo passado: hoje, o “sentido” se torna cada vez mais mercadoria a ser consumida. Marcada pela lógica lucrativa e necessidade de consumo, nossa atualidade não se constitui pela busca de um “sentido divino”, como fora no domínio religioso; hoje, o “sentido” torna-se mais um item a ser adicionado ao nosso “carrinho de compras”. O capitalismo, frente sua invejável capacidade de reinvenção, percebeu na subjetividade um novo tipo de mercadoria que pode garantir a manutenção de sua existência enquanto sistema econômico, político e estético. Se não estamos mais a procura de uma verdade imutável, anunciada pelos profetas bíblicos, estamos, ao contrário, diante de um novo paradigma do sentido: a fabricação - o sentido como produto de um processo maquínico.
Sendo assim, dentro da imensa possibilidade de sentidos fabricados pelas máquinas midiáticas, financeiras e institucionais, observamos um niilismo típico da modernidade: da “grande promessa”, onde o território subjetivo se vê bombardeado de sentidos, de inúmeras possibilidades de existir, de diversas promessas do que pode vir a ser, a desejar, a perceber, a agir, a lembrar, a pensar, enfim, a existir, ele também, ao mesmo tempo, se vê num “grande perigo” frente ao esvaziamento de sentido a partir do excesso das possibilidades de existir. Tal jogo, entre promessa e perigo, se dá pela produção de “sentidos prontos”, isto é, transcendentes; ou seja, a partir da compreensão da subjetividade e do sentido enquanto mercadoria, todo funcionamento maquínico de nosso sistema atual visa a produção de sentidos que, apesar de não fazerem referência a nenhuma realidade divina, são exteriores e, portanto, transcendentes à experiência do próprio território subjetivo em questão. São “sentidos”, modos de perceber a si e ao mundo que são fabricados, modelados, introjetados e consumidos por nós, materializando-se em gestos, palavras, identidades e etc. Nisto reside a captura: o consumo desenfreado de sentidos transcendentes, ou seja, de uma maneira de existir já enlatada e etiquetada, que diminui a potência que o vivo tem de criar sentidos e modos de existir próprios, singulares e, sobretudo, imanentes à sua experiência.
Tal captura atua como via de gerência das vidas ao ar livre e não apenas pelo confinamento nas instituições, como era no século passado nas prisões e hospitais psiquiátricos. É na medida que torna a existência mais um produto nas linhas de produção de sua fábrica que a modernidade, atualmente, direciona e prevẽ os modelos de sentido que devemos consumir para não comprometer o funcionamento e a manutenção de sua engrenagem (poderíamos citar como exemplo os processos de medicalização - que emergem como estratégia de realocar as “alterações comportamentais” aos trilhos da formatação -, todavia é um tema que merece mais tempo e dedicação e que, talvez, possa ser alvo de um próximo texto).
Ao contrário, quando hesitamos frente ao constante consumo atual, abrimos brecha para isto que estou chamando de resistência. Antes de uma mobilização partidária social, trata-se de uma atitude singular que cada um nós pode experimentar: resistir à captura é produzir tensionamentos éticos, isto é, questionar as nebulosas que nos compõe - os hábitos, os vetores de força, os modelos que reproduzimos e consumimos, as tiranias que nos afastam da potência que dispomos de inventar para nós uma maneira de viver própria. Se a captura sintoniza com a transcendência, a resistência reside na imanência, nisso que tem gênese na experiência de cada um, na maneira como afetamos e somos afetados cotidianamente. A saúde, antes de ser um terminal ideal a ser alcançado, versa sobre uma prática diária de cuidado de si, um trabalho constante que guia a ética de nossa existência. De que maneira podemos produzir e não apenas consumir sentidos? Arrisco dizer que a resposta está no próprio ato de desejar, de sentir, enfim, de criar e inventar, orientado por essas tensões éticas, maneiras próprias, imprevisíveis e irreverentes de afetar e ser afetado.
Israel Tebet
Colunista no LaSP, graduando e pesquisador em Psicologia/UFF - Grupo "Individuação, subjetividade e criação" nos diretórios do CNPq.